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A vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno da eleição de 2018 é uma tragédia, mesmo que, por muito tempo, bastante anunciada. A sua carreira política, seus anos como deputado no congresso nacional, anunciaram um sujeito que se amarrou na democracia representativa, nas polêmicas, trazendo consigo seus filhos e a defesa de uma nação com valores conservadores, patriota, revisando a história da ditadura militar. A vitória eleitoral de Bolsonaro não pode ser vista de um só ângulo, mas de uma reunião de vários processos, alguns articulados por ele, outros por golpes de sua sorte. Contudo, o que a sua vitória nos mostra? Como ele tornou-se o presidente? Quais os passos do dia seguinte?


No princípio: A Nova República. As análises dos jornais de grande circulação apontam o fim do dualismo entre o PSDB e o PT, dois grandes partidos que duelaram pelo cenário eleitoral brasileiro notadamente na disputa pela presidência na maior parte da história da Nova República. Carregando consigo tudo de pior que a redemocratização brasileira trouxe, seja no MDB como grande partido, perdendo seu caráter de opositor da ditadura e grande concentrador dos fisiologismos de uma República, mas também nos partidos do centrão que encarnavam a disputas por cargos e vendiam-se por ministérios e posições nas empresas públicas, no mesmo caldo, as viúvas políticas da ditadura que ainda tinham um grande poder político e articulavam o jogo de poder de várias partes do Brasil. A cada eleição a esperança de mudança e também a decepção com os políticos que não conseguiam escapar de um sistema político corrupto. Ao mesmo tempo que na própria sociedade a corrupção era endêmica e faz parte do cotidiano, nas ações mais corriqueiras, tudo se realimenta.

A eleição de Lula em 2002 esteve pautada muito nessa linha da esperança por um Brasil diferente, votou-se com a esperança que o Partido dos Trabalhadores não se venderia para a política corrupta que dominava Brasília. Porém, os mesmos nomes foram eleitos para os cargos legislativos, a mesma mídia da ditadura, o mesmo exército e a mesma classe empresarial, não havia grandes saídas. O partido acabou por envolver-se, seja na corrupção endêmica, seja na distribuição de cargos, teve que articular-se com o que havia de mais espúrio no país. Contudo, as mudanças estruturais aconteciam no país, retirávamos do mapa da fome, levantamos economicamente o Brasil a partir de sua base, a desigualdade não diminuiu, mas se abriu caminhos para oportunidades. É impossível negar que o Brasil mudou de figura: consumiu, produziu e enriqueceu. Mas não diminuiu sua desigualdade, sua violência e o seu clientelismo.

O PSDB nada conseguiu fazer contra Lula, pois este constitui-se um excelente articulador de forças, um negociador de primeira linha com as várias frente de poder que se constituíram no país, foi dessa forma que ele conseguiu eleger e reeleger a presidenta Dilma Rousseff. Os Tucanos tentaram das mais variadas formas, com toda a força da mídia, mas as eleições demostravam um respaldo popular dos projetos petistas, somente Aécio conseguiu quase quebrar essa hegemonia, mas no fim, sua derrota frustra os planos tucanos. Ele era visto somente como um playboy mineiro pela maioria da população, perdendo, principalmente, em seu estado natal.

O partido derrotado não aceita a derrota começa sua campanha de desqualificação das urnas, pedindo recontagem para desestabilizar o governo reeleito, começam um terceiro turno sem que se ouça nenhuma manobra das instituições para fortalecer e reconhecer a escolha popular. Ao mesmo tempo, o governo de Dilma forma uma agenda econômica que não havia sido votada, diminuindo os investimentos do estado, desacelerando o crescimento. Suas contas também não haviam sido votadas pelo congresso, travando suas agendas políticas. No fim da década petista, conformaram-se várias crises e desestabilizações que culminaram em um impeachment bastante questionável.

Ao lado da disputa, a extrema-direita, renascida das ruas de 2013, tornou-se dia a após dia mais falante, construindo um projeto conservador, diria até teocrático, para o Brasil, lançando apelos aos militares, ou seja, ao autoritarismo, mas também a defesa da família, pilares da sociedade, segundo eles. Seja nos cultos evangélicos, nos protestos com camisetas da CBF ou no acampamento nos comandos dos exércitos, esses sujeitos encontraram uma figura que os convergia, lá estava Jair Bolsonaro para ser o midas da direita brasileira.


No discurso o agora eleito presidente era bastante simplista em suas propostas: mudar tudo que estava aí! Esse mantra esconde e revela seu plano para o Brasil, marcado por uma política ultraliberal na economia e profundamente conservadora nos costumes. Seu discurso polêmico servia de arma, pois seu populismo de direita trazia à tona os preconceitos colados no povo brasileiro: seu racismo, seu absoluto sexismo e uma grande violência homofóbica. Mas dali também a grave luta de classes que faz jorrar sangue no país, impulsionando a violência tanto no mundo rural, quanto nas grandes cidades. Um país que as eleições nos mostraram dividido, amedrontado e que nem precisou de grandes crises econômicas para entrar em desespero e procurar um líder.

Um sujeito com um currículo extenso de polêmicas, colocado como chacota por um programa de humor político que encontrou um palhaço para trazer audiência, um deputado que ficava escondido entre tantos outros deputados de direita no Brasil. Proferia das noites de segunda-feira os maiores impropérios, mas não parou somente nesse programa, foi muitas vezes para a RedeTV e de lá foi conquistando seus seguidores, especialmente quando migrou para a internet, surfando na forma de gerar engajamento que as redes sociais pedem. Nesse sentido, Bolsonaro é um problema das nossas relações sociais no século XXI, marcadas pelas redes sociais, mas não somente.

Como candidato, ele expressava o que havia de mais violento na sociedade brasileira, mas também trazia o sentimento de esperança para o combate a corrupção endêmica, a violência que assola as cidades brasileiras. Os atores unidos vão das viúvas da ditadura, da elite econômica ávida por reformas para aumentar seus lucros, dos evangélicos com seu projeto de costumes até os ultraliberais que acreditam que o estado não deve atrapalhar a vida das pessoas. Projetos todos que podem ser, inclusive, bastante incoerentes entre si. De toda essa união, de toda a insatisfação com vida política, a saída da direita para o discurso desavergonhado da defesa do lucro e não mais das pessoas. Articular tudo isso como um símbolo deu a Bolsonaro e a sua família a presidência.

A vitória de Bolsonaro ecoa todos os processos políticos descrito aqui, mas também a anistia, a colonização, a escravidão. O presidente eleito acaba por ser o símbolo de tudo que colocamos para debaixo do tapete ao longo de todos esses anos de país, tudo que não foi resolvido e para ser justo, imagino que ele não tenha consciência disso, o que não o faz menos símbolo. Assim, do fundo do poço não é possível ver saídas, somente a pedra nos cerca e a escuridão nos faz companhia, mas se olhar para cima, veremos que existe a luz do sol que está lá fora. É preciso, então, ter serenidade para perceber que o tempo é impiedoso, ele segue em frente, e a política não está resumida as eleições.


Invariavelmente, a esquerda agora está com os discursos de que é preciso “voltar as bases” e “construir uma oposição forte”. Sentenças que já eram proferidas, particularmente a primeira, desde a eleição de Dilma. O afastamento dos partidos de esquerda das bases significa muito mais que eles não estão mais no horizonte de muitas pessoas, porque a política não passa mais hegemonicamente por eles, as associações de participação na democracia estão mudando, com elas as formas de participar. A tecnologia do mundo moderno não pode passar desapercebida pela esquerda, porque o corpo a corpo funciona, mas o mundo torna-se cada vez mais rápido, prático e apilhado de tarefas, as bolhas oferecem muito mais entretenimento do que uma discussão política. Ao mesmo tempo que “as bases” não estão à espera de salvadores, continuaram suas vidas quando foram ignoradas e não tem memória curta.

A questão, talvez, esteja não em rearticular-se, mas aprender com o passado e com as experiências positivas conquistadas em governos como os de Porto Alegre, por exemplo. Mas articular novas experiências, novas formas do fazer político, porque estas foram muito bem sequestradas pela extrema-direita. Mas é preciso faze-lo com desconfiança, com o pensamento crítico que é um marco importante para a esquerda. É preciso dar um basta na retórica do salvador da pátria e construir um projeto de nação que nos faça encontrar com os escombros deixados pelo passado, olhando para o futuro e planejando que tipo de cidadão e país nós queremos. O desafio está posto e teremos que fazer isso ao mesmo tempo que articulamos uma oposição que seja efetivamente vitoriosa nas batalhas do congresso e não somente nas páginas dos jornais de esquerda. Não há certeza, mas é preciso trabalhar com a realidade que nos cerca, debatendo o mundo que nos foi entregue, pois esse vai além da eleição de Bolsonaro, é muito mais do que isso.

 

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