Lula, a ONU e o TSE

No dia 31 de agosto de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral do Brasil determinou que Luiz Inácio Lula da Silva não poderia ser candidato à presidência do país. O voto do relator Luiz Roberto Barroso foi acompanhado por outros cinco ministros e contrariado apenas por Edson Fachin, que afirmou estar levando em consideração a recomendação do Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas.

O voto de Fachin faz uso do mesmo argumento que a militância de esquerda já vinha usando em defesa de Lula desde a publicação da recomendação pelo Comitê. No entanto, isto acabou por desencadear uma enxurrada de fake news e desinformação, e o que acaba ficando bem explícito nisso tudo é que muita gente não faz ideia do que seja a ONU e do que ela possa fazer.

Para poder compreender o que significa uma recomendação “da ONU” a gente precisa entender, antes de mais nada, o que é “a ONU”. E eu vou começar destruindo as certezas de muita gente logo de cara: “a ONU” não existe. “A ONU” não recomenda nada, não determina nada, não decide nada. O que existe, aí sim, é a vontade coletiva dos membros da ONU. O que eu quero dizer com isso: quando “a ONU” ou alguma órgão interno dela “decidem” alguma coisa, esta decisão é fruto de uma votação interna dos membros daquele órgão.

Por exemplo: em 2011 o Conselho de Segurança da ONU autorizou uma intervenção militar na Líbia. “A ONU autorizou a invasão da Líbia”? Não. Os países membros do Conselho de Segurança votaram por autorizar tal intervenção. Não existe um órgão todo poderoso supra-nacional que tenha pretensão de governar o mundo todo. O que existe é uma organização que reúne nações do mundo e tenta estabelecer o diálogo entre elas e tomar decisões coletivamente. Se queremos “culpar” alguém pela decisão da ONU em intervir na Líbia, culpemos França, Reino Unido, Líbano, Bósnia e Herzegovina, Colômbia, Gabão, Nigéria, Portugal, África do Sul e Estados Unidos, que votaram a favor.

Então, quem elaborou a recomendação do Comitê de Direitos Humanos? Dezoito especialistas em direitos humanos escolhidos pelos 116 países signatários do seu primeiro protocolo adicional. Nenhum país é obrigado a assinar tal protocolo, porém, aqueles que optam por fazê-lo comprometem-se a cumprir seus preceitos. O Brasil é um signatário deste protocolo.

Isto significa, então, que a ONU vai obrigar o Brasil a cumprir a recomendação do Comitê? Não. Segundo a Carta das Nações Unidas (documento que “funda” a ONU), o único órgão vinculante (aqueles que podem punir países que descumpram suas determinações) da organização é o Conselho de Segurança. Ou seja, todos os outros órgãos, comitês, conselhos e comissões não possuem, segundo as definições da própria ONU, o poder de punir qualquer país que descumpra suas regras.

Entretanto, não é raro que os Estados que aderem aos compromissos da ONU encarem as regras destas organizações como obrigações e até mesmo transformem-as em leis nacionais. Por exemplo, o Brasil, como Estado soberano, ao assinar livremente os pactos referentes aos direitos humanos da ONU, declara ao mundo, que cumprirá os pontos daqueles acordos. Ou seja, a ONU não disse que o Brasil precisa cumprir as recomendações do Comitê de Direitos Humanos. Quem disse isso foi o próprio Brasil. Portanto, parece-me no mínimo estranho a facilidade com a qual o Itamaraty desconsidera qualquer validade jurídica da recomendação.

E é aí que eu queria chegar. Segundo a ONU, seria correto que o Brasil permitisse que Lula concorresse à eleição e mantivesse plenamente seus direitos políticos até que se esgotassem todos os recursos possíveis. No entanto, segundo a ONU, não há nenhuma punição para o Brasil caso ele não o faça. Porém, o Brasil costuma encarar como vinculantes as decisões dos órgãos da ONU dos quais faz parte. Então, segundo o próprio Estado brasileiro, o Brasil seria, de certa forma, obrigado a cumprir tal recomendação. No entanto, o Ministério das Relações Exteriores do governo Temer já sinalizou que não vê valor jurídico nesta recomendação. Sendo assim, caberia ao poder judiciário brasileiro decidir.

E acho que todos nós sabemos que o poder judiciário brasileiro já decidiu.

Em 2016.

 



Para saber mais

Para escrever este texto eu me baseei, além das notícias e comentários em redes sociais sobre o assunto, eu li e ouvi algumas coisas para me embasar melhor.

Entre elas, está o Xadrez Verbal #154, podcast no qual o Filipe Figueiredo fala um pouco sobre o assunto.

O Filipe também publicou um texto na Gazeta do Povo falando sobre isso de forma mais detalhada.

Além disso, também ouvi a edição especial do Chutando a Escada onde o doutor em direito internacional Jefferson Nascimento explica um pouco melhor a recomendação do Comitê e o possível impacto dele para o Brasil.

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